Hoje, um a cada cinco adultos sofre de dor crônica, sendo classificada como a principal fonte de sofrimento e disfunção humana. Muitas vezes, a sensação se torna comum e ativa no dia a dia, onde o indivíduo reaprende a viver de acordo com as limitações presentes, ademais, a dor de coluna lombar, segundo o Global Burder of Disease Study, é a principal causa de incapacidade mundial, além da osteoartrite e cefaleia.
Há três tipos de dor, definidos de acordo com a subcategoria, sistema e mecanismo neurofisiológico predominante. Segundo a International Association for the Study of Pain (IASP), a dor é definida como “uma experiência sensitiva e emocional desagradável, associada, ou semelhante àquela associada a uma lesão tecidual real ou potencial”, sendo sempre uma experiência pessoal, com influência de fatores biológicos, psicológicos e sociais de cada indivíduo, portanto, toda dor deve ser respeitada.
Cada pessoa experimenta a dor de maneira diferente, com base em sua “sensibilidade à dor”, capacidade de modulação endógena, tolerância e enfrentamento da experiência desagradável. Acredita-se que os mecanismos da dor são ditados por um sistema entre estruturas anatômicas, atividades, funções e dinâmica dos circuitos cerebrais que medeiam a percepção, a modulação e a saliência/atenção. Sentir dor é fundamental para a nossa existência, possui papel fundamental adaptativo/alerta, onde aprendemos o conceito de dor através da neuroplasticidade, por meio das experiências durante a vida que modulam o que pode ser perigoso ou não.
Nocicepção e dor
Devemos primeiramente compreender a diferença entre nocicepção e dor, uma vez que a primeira não pode ser determinada apenas pela atividade dos neurônios sensitivos e a segunda não pode ser definida apenas por uma inflamação. Na experiência sensitiva e emocional desagradável a resposta dolorosa se expressa através de uma trama neural, não há sítio específico para a dor no cérebro, atuando em várias áreas, sendo assim, também é possível sentir dor sem aferência aparente, dependendo de como o cérebro interpreta a sensação, sendo sempre consciente. Pode servir como um sinal, no caso da dor aguda, ou como doença quando crônica. Diferente da dor, a nocicepção é o processo neural de codificação, ocorre pela atividade dos neurônios sensitivos perante um estímulo nocivo ou inócuo, variando de acordo com a hipersensibilidade do indivíduo, utiliza elementos específicos, como o receptor sensitivo de alto limiar do sistema nervoso somanossensorial periférico, capaz de transduzir e codificar estímulos nocivos através dos nociceptores, tendo papel fundamental na proteção.
Duas hipóteses de maior alcance para o entendimento de como a nocicepção pode se tornar dor:
- Teoria do portão/comporta de dor (TCD): por Melzack e Wall em 1965, através do olhar fisiológico da medula espinal, defende que o equilíbrio entre as aferências nocivas e inócuas ao nível da medula determina o sinal nociceptivo que viaja ao longo da medula e, no córtex é interpretada como dor.
- Variação na “sensibilização central”: em condição patológica e sensibilização do sistema nervoso, para condições de dor crônica, onde o “ganho” da sinapse nociceptiva da medula espinal é amplificado, a teoria moderna é defendida por Woolf e Salter em 2000.
Fenômeno do limiar
A conversão da nocicepção em percepção consciente da dor depende do circuito do cérebro e a dinâmina temporal para o fenômeno do limiar. Entende-se que, não é o estado do tecido que determina a dor, e sim a percepção de ameaça. Do ponto de vista de seleção de comportamento, o limiar entre nocicepção e dor é imaginado para ser gerado por meio de circuitos reverberantes entre a área tegmentar ventral e substância negra, o estímulo ventral (núcleo accubens); modulado por entradas límbicas (desagrado e sentimento) e corticais que refletem experiências passadas, valores, expectativas e saliência em relação ao self, e onde a saída, por sua vez, modula loops estriatal-corticais para controlar repertórios comportamentais. O fenômeno do limiar surge de um contrapeso entre recompensa e aversão no contexto da história aprendida e o estado instantâneo do self que bloqueia a conversão de nocicepção subconsciente para dor consciente.
A crença mal adaptativa do medo ou entendimentos disfuncionais para a dor como o receio de se mexer, pode sinalizar a transição da dor aguda para a crônica, além de características depressivas, alta vigilância e catastrófica.
Não existe dor psicológica
É importante salientar que o conceito de dor psicológica não existe, aspectos psicossomais não causam dor, o que pode ocorrer é a ativação de fatores sociais, cognitivos e psicológicos, influenciando na transição da dor aguda para a dor crônica, escapes, piora e espalhamento da dor. Estudos confirmam que expectativas, emoções e atenção podem modular a dor por dimensões diferentes, na expectativa positiva há interação do córtex pré-frontal dorsolateral, córtex cingulado anterior e substância cinzenta periaquedutal, com atuação dos neurotransmissores opioides endógenos e das vias dopaminérgicas, enquanto que nas estruturas envolvidas na expectativa negativa parece que há forte atividade do sistema da colecistocinina endógena; a ansiedade, estresse e afeto negativo podem modular a resposta de um indivíduo às expectativas positivas e negativas durante o tratamento da dor. Também é válido compreender que, a emoção e a atenção modulam a percepção da dor por diferentes dimensões: enquanto a manipulação do estado emocional pode modificar a intensidade (dimensão sensório-discriminativa) percebida da sensação de dor sem alterar de maneira significativa o desconforto percebido da dor, alterar o estado de emoção pode interferir na sensação desagradável (dimensão afetiva-emocional) da dor sem alterar a intensidade da sensação. Ademais, a dor pode ter impacto negativo no emocional e função cognitiva, com mecanismos subjacentes que se diferem drasticamente entre a experiência da dor aguda e crônica.
Através do múltiplo olhar das variantes que interferem e definem a dor, hoje ela é dimensionada em três partes:
- Sensório-discriminativa: local, características, intensidade e duração da dor;
- Afetivo-motivacional: caracterizado pelo medo e desagrado com a percepção da dor;
- Cognitivo-avaliativa: coloca a dor em termos de experiências prévias e probabilidade de resultados, pode modular as dimensões sensório-discriminativa e afetivo-motivacional. Inclui traumas, capazes de mudar a percepção, onde as experiências prévias interferem na tomada de decisão e dimensão da dor.
Compreender as variantes, mecanismos e ramificações da dor ajuda na elaboração do melhor diagnóstico e tratamento da experiência sensitiva e emocional desagradável, uma vez que toda dor deve ser compreendida e respeitada.